Quando a memória afetiva da arte encontra o drama poético do futebol santista.
Como fotógrafo com sólida formação visual e profunda reverência à história da arte, aprendi que enxergar vai muito além de ver. Trata-se de conectar tempos, sensibilidades e símbolos. Um clique bem feito carrega, por vezes, os ecos silenciosos de séculos de arte que nos ensinaram a compor, sentir e narrar com imagens. E é nesse cruzamento entre o futebol e a arte brasileira que proponho uma leitura comparativa entre duas obras: uma fotografia feita por mim de Yeferson Soteldo, em 2023, pelo Santos FC, e a pintura A Família (1924), da genial Tarsila do Amaral.

Na imagem em preto e branco, feita durante a vitória santista por 2 a 1 sobre o Coritiba pelo Campeonato Brasileiro, vemos Soteldo cercado por seus companheiros. É um momento de celebração, mas também de refúgio. Há emoção, suor, mãos entrelaçadas, um quase útero coletivo. Um gesto de pertencimento. O contraste forte de luz e sombra dramatiza a cena, enquanto a composição em camadas de corpos e braços constrói uma narrativa visual sobre união, luta e identidade. É o futebol como gesto humano, como linguagem do corpo e da alma.
Ao observar a pintura A Família, de Tarsila, a conexão salta aos olhos. Em ambos os casos, há um agrupamento de figuras em torno de uma ideia de unidade. Os corpos próximos, os rostos serenos, os gestos contidos mas eloquentes: tudo revela o poder do coletivo. Tarsila retrata o Brasil com cores planas, formas arredondadas e rostos que parecem se fundir. Sua obra é uma afirmação visual de afeto e pertencimento. Assim como na fotografia, também há um centro – na pintura, é a criança; na foto, é Soteldo. E em volta deles, os que protegem, acolhem, celebram.
Ambas as imagens falam da “família” – seja a consanguínea ou a construída no campo de batalha esportivo. Ambas exalam brasilidade, ainda que uma em traços modernistas e a outra em fragmentos de luz congelados em campo. O fotógrafo que dialoga com a história da arte não apenas documenta o presente; ele o interpreta, o prolonga e o insere em uma linhagem cultural. Ao me deixar atravessar por Tarsila, por Portinari, por Caravaggio, não estou apenas homenageando. Estou criando com eles, em outra arena, mas com o mesmo compromisso: revelar a alma humana através da imagem.
Em campo ou na tela, o gesto permanece o mesmo — fazer da arte um espelho do que somos e do que sonhamos ser.